terça-feira, 28 de outubro de 2014

Nirvana - In Utero


Ano de lançamento: 1993


Felipe disse:
"Uma coisa que eu respeito muito no rock n’ roll é a ética. São poucas as bandas que conseguem chegar ao mainstream sem perder seus valores e princípios. Outras chegam lá e dão um foda-se pro sistema assim que possível. Algumas nem mesmo querem chegar lá. O Nirvana se encaixa nos três casos.

Resumidamente, a banda saiu direto das garagens sujas e úmidas de Seattle para involuntariamente ser o principal representante de um movimento que sem querer vendeu zilhões de discos; movimentou zilhões de dólares; derrubou do topo das paradas artistas como Michael Jackson; carregou a MTV nas costas; foi capa de todas as revistas caretas do mundo; vendeu peças pros guarda-roupas de patricinhas do planeta inteiro; gerou dezenas de bandas ruins que diluíram o som e a estética em moldes propositalmente comerciais; foi superexposto até gerar o último níquel e então morrer. Com um tiro na boca.

De repente, no início dos anos 90, público e crítica não tinham mais espaço para bandas de hard rock machistas e megalomaníacas como o Guns n’ Roses. Use Your Illusion?!? Videoclipes em trilogia?!? Bandas de hair metal eram ridicularizadas em público como o inimigo a ser combatido, exatamente como o punk fizera com o rock progressivo na segunda metade da década de 1970. 

O ápice disso tudo foi Nevermind, o álbum que virou o mundo de cabeça pra baixo. O próprio Kurt não entendia direito o que estava acontecendo. Fã de bandas “esquisitas” como Pixies, Sonic Youth, Mutantes (Kurt chegou a deixar um bilhete para o ídolo Arnaldo Baptista quando esteve no Brasil: “cuidado com o sistema, eles te engolem e depois te cospem”) e Meat Puppets, ele morava no banco de trás de um carro velho no auge do sucesso. Só aceitou comprar uma casa por insistência de Courtney Love. Kurt estava obstinado a não se tornar algo que ele sempre odiou: o estereótipo do rockstar arrogante, como seu rival Axl Rose. Sabotava shows em estádios lotados; negava entrevistas para grandes veículos, dando preferência à fanzines desconhecidos e divulgava bandas independentes. 

Kurt dava declarações como 'se você é racista, sexista ou homofóbico, não compre meus discos, pois eu não quero seu dinheiro' e ridicularizava o macho-alfa americano em toda oportunidade que tinha. O compositor levou a anarquia dos shows de bandas de garagem para a mídia global e horrorizou todo mundo. Ponto pra ele. Mas o sucesso do álbum de Smells Like Teen Spirit e Come As You Are foi tanto, que o próximo disco precisava afastar os fãzinhos recém-convertidos de rock. E esse álbum seria In Utero, lançado em 1993.

O mundo esperava sedentamente pelo próximo trabalho do Nirvana, que certamente traria mais pérolas pop-radiofônicas-distorcidas. Kurt preferiu um disco com letras profundamente pessoais, que infelizmente refletiam seu frágil estado de espírito. No álbum, originalmente chamado “I Hate Myself and I Want to Die”, Cobain traz desabafos sobre o mainstrean (Rape Me), sobre suas conturbadas relações com o pai (Serve The Servants)e com a esposa (Heart-Shaped Box), sobre a idiotice de ser feliz (Dumb) e sobre a vergonha de ser um rockstar 'mentiroso e ladrão' (Pennyroyal Tea).  
Entre outras porradas sonoras, o álbum acaba com o mantra de All Apologies, inspirado em outro mantra, que John Lennon repetia no final de Across the Universe. Confesso que poucas músicas me dão um nó na garganta como All Apologies

Essa fossa toda vinha dentro de capa e contracapa que traziam fetos e partes do corpo humano estirados sobre um chão de orquídeas e lírios. Viciado em heroína (entre o final das gravações de  In Utero  e seu lançamento, o compositor sofreu duas overdoses), profundamente deprimido e desapontado com o descontrole sobre o status que sua banda tinha alcançado, Kurt se mataria alguns meses depois, no gesto mais sincero e extremo - ainda que idiota - que um verdadeiro punk podia ter. O músico atirou contra a própria cabeça, não sem antes deixar toalhas e materiais de limpeza por perto, para que o empregado que achasse seu corpo não tivesse muito trabalho. 

Definitivamente, Kurt Donald Cobain não nasceu para o mundo hedonista e egocêntrico do rock n’ roll mainstream. No entanto, nem o belo In Utero, nem seu suicídio serviram para afastar os fã-boys. Eles ainda proliferam dia após dia, pagando de truezões nas pracinhas da vida. Talvez fosse melhor ele ter continuado vivo, compondo e gravando. Mas Kurt preferiu queimar a se apagar aos poucos, como disse em sua carta de suicídio, citando Neil Young na canção Hey Hey, My My (Into the Black), do maravilhoso álbum Rust Never Sleeps, de 1979, que merece uma futura resenha nesse mal escrito blog."

Nota 10/10


Rafael disse:
"Imagine que você tenha uma banda. Seu objetivo, numa perspectiva em que se leve em conta “mérito artístico”, é de propagar sua música, de ser conhecido (e reconhecido). Sob a ótica de mercado, é de vender (e muito) a música feita. Caso você faça um álbum de grande reconhecimento e vendas, qual seria o passo lógico? Repetir a fórmula, certo?!


Se você estivesse nos anos 90 e, principalmente, se o nome da sua banda fosse Nirvana, a resposta seria um grande e retombante NÃO! Nesta década toda uma lógica de mercado foi jogada por terra. Ou melhor, foi totalmente invertida. O pop dançante meticulosamente calculado e controlado pelas grandes corporações se viu dando lugar a slackers sem perspectiva, que viviam em trailers com famílias despedaçadas, tendo como amigo e educador a TV e seus enlatados das sitcoms, videoclipes dos anos 80 e uma cena underground de música pop cada vez mais contundente e afim a seus ideais de não ter ideais. Bem-vindos à Geração X.

Deste universo veio o Grunge, um som que regurgitava um caldeirão de 'subculturas', o rock farofa dos 80, o hard rock dos anos 70, o estilo “largado” de Neil Young & Crazy Horse, a estética do 'Faça Você Mesmo' (DIY) do punk e uma sensibilidade mais introspectiva de temas do que o engajamento político que se via nas décadas anteriores. Os jovens desta geração se identificavam mais nas letras cheias de angústia e amargura de Kurt Cobain e Eddie Vedder do que nas letras hedonistas de artistas como Prince,  Kiss ou Mc Hammer.

O jornalismo musical já vinha prestando atenção no que vinha sendo feito no underground americano nos anos 80 e, na passagem da década, o Nirvana grava e lança Bleach por 600 dólares pelo selo Sub Pop e a pequena agitação na cena foi o bastante para fecharem um contrato maior com a Geffen Records (que depois veio a ser a principal gravadora do 'rock alternativo' dos anos 90). Ninguém, no entanto, estava preparado para Nevermind, o segundo álbum do Nirvana. Nem mesmo o próprio Nirvana, muito menos Kurt Cobain. Com uma produção mais 'profissional', atingindo o meio termo adequado entre som limpo e distorções e ruídos, aliado a ótimas composições de inegável apelo pop, Nevermind é considerado o disco que iniciou o som dos anos 90, para melhor ou pior.

À medida que Nevermind alçava vôos mais altos nas paradas e os números de vendas atingiam mais de seis dígitos, o que seria na visão de todos como 'ter chegado lá', era na visão de Kurt 'um beco sem saída'.

Encurralado, diante da pressão do sucesso, das expectativas dos fãs, do anseio do jornalismo musical, da lógica opressora de mercado das gravadoras, a resposta para isto tudo veio na forma de In Utero, terceiro álbum da banda. Onde a produção de Butch Vig em Nevermind tinha espaço para respirar, o produtor Steve Albini cria um ambiente abafado, num amálgama estranho de produção lo-fi feito em ambiente profissional. O apelo pop está lá, mas sob diversas camadas de distorções, ruídos e microfonias. Ao passo que Nevermind começa com um chamado a toda uma geração no inegável hit de Smells Like Teen Spirit, In Utero inicia num tom de 'anti-hit', no escárnio da negação de sua popularidade que é Serve The Servants.

Não há alívio nas faixas que seguem, seja pelo esporro das distorções massivas de guitarra e da bateria brutal de Scentless Apprentice e Radio Friendly Unit Shifter, no rancor da autodepreciação disfarçado em folk de Dumb e Pennyroyal Tea, nas dinâmicas contrastantes extremas de Frances Farmer Will Have Her Revenge on Seattle e Milk It, no apreço para automutilação e autodestruição de Heart Shaped Box e Rape Me.

Sabemos, no entanto, que Kurt não conseguiu lidar com seus demônios. Muito pelo contrário, em In Utero ouvimos um esboço para sua carta de suicídio, o grito desesperado de socorro de alguém que não podia suportar o peso do mundo nas suas costas. Este clamor, no entanto, não ouvimos a tempo."

Nota: 10/10



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