sexta-feira, 8 de abril de 2016

Patti Smith - Horses


Ano de lançamento: 1975


Felipe:
Este texto poderia começar da mesma forma que outros mil textos produzidos sobre Horses desde 1975: “Jesus died for somebody sins, but not mine”. A frase que abre o primeiro álbum de Patti Smith é o início de Gloria, cover que acabou se tornando a versão definitiva da canção de Van Morrison. Mas este texto vai começar explicando o porquê de Horses ser de alguma forma responsável por pessoas como Zak de la Rocha (e eu) preferirem “Patti Smith a Van Morrison; Bad Brains a Eagles ou The Clash a Ronald Reagan”.

Horses foi um dos primeiros registros da criação da cena punk - que ainda não era um movimento propriamente dito - lançado meses antes do primeiro álbum dos Ramones, companheiros de palco no CBGB. Mesmo consolidado historicamente como um documento fundamental da música americana do século XX, é um pouco complicado falar para um fã de Dead Kennedys que Patti Smith é a matriarca do punk baseado “apenas” no que ouvimos no álbum de estreia.

Diferente do minimalismo lírico dos Ramones, dos textos do Clash incitando a luta contra os opressores ou dos versos niilistas dos Pistols, Horses é um punk que traz poesia embalada não só nos rocks rudimentares do The Patti Smith Group e nos vocais anárquicos da cantora como também em elementos de reggae e jazz. Trata-se de um híbrido estranho de poesia beat com o rock n’ roll cru do CBGB.

É mais fácil todos concordarem que Patti Smith é uma das figuras mais cool do rock n’ roll. A própria capa de Horses define isso, na imagem de Robert Mapplethorpe - fotógrafo da cena sadomasoquista gay de Nova York que, apesar de homossexual, teve um relacionamento com a cantora. A androginia, o corte de cabelo desleixado, a camisa branca surrada que ela conseguiu no Exército da Salvação, uma mistura unissex e feminista de Baudelaire com Sinatra que destoava da imagem promocional das ‘girl singers’ da época, como a contemporânea e colega de CBGB Debbie Harry.

Fã doentia de Rimbaud e dos poetas beats Jack Kerouac, Allen Ginsberg e William Burroughs, Patti ainda tinha uma idolatria tão grande por Keith Richards que a fazia acreditar, ainda adulta, que o guitarrista era seu amigo imaginário. Morava no Hotel Chelsea e ganhava a vida como redatora freelancer para revistas de rock. Definitivamente, uma pessoa legal para se ter como amiga nos bares copo sujo e quebradas fodidas de Nova York nos anos 70.

Mas, antes de mais nada, Patti é considerada uma poetisa (ouça Horses numa oportunidade em que tiver acesso às letras), o que a coloca na lista de escritores do rock, junto de nomes como Bob Dylan e Jim Morrison. Refletindo a bagagem cultural de Smith como poetisa, Horses traz letras inspiradas no Simbolismo francês, em gravações que contam com participação de nomes de peso da cena local como o Television Tom Verlaine – com quem Patti também teve um caso - e produção do Velvet Underground John Cale. 

Mesmo sem mirar no mundo inteiro, o coice de Horses atingiu ouvidos do outro lado do Atlântico, ajudando a fomentar a revolução do punk inglês de 1977, bem mais furioso e rígido. 

A cantora conta que, ao tocar na Inglaterra pela primeira vez, aproveitou para assistir uma apresentação dos novatos Sex Pistols. Na ocasião, assustada com a proporção que o punk rock tomou no país, viu Johnny Rotten dizer ao público: “alguém aqui foi no show da hippie com o pandeiro ontem? Horses, horses, horses... HORSHIT!”. De repente, para a geração de garotos sem futuro e semianalfabetos que o Partido Trabalhista abandonara no Reino Unido, as referências intelectuais da cantora faziam dela uma inimiga.

Mas não interessa. Como ela diz, aos berros, na versão matadora de My Generation, do The Who, que algumas versões de Horses trazem: “I don’t need that fucking shit!”. Durante as oito canções do álbum, Patti Smith canta, grita, uiva ferozmente, sussurra docemente e planta as sementes malditas do punk no solo regado a mijo de cerveja barata.

Desde então, muita gente não ouviu Van Morrison outra vez.

Nota: 10/10



Rafael:
Entram em volume quase inaudíveis o baixo e o piano, numa cadência lenta e repetitiva. Em poucos compassos intercalados surge uma voz anasalada, severa, anunciando: “Jesus morreu pelos pecados de outros, não os meus.” Aos poucos entram linhas tímidas de guitarra e a instrumentação e o vocal vão ganhando força e velocidade, como um velho trem pegando embalo. “Os pecados são meus, pertecem só a mim, a mim.”, afirma a mulher. No meio da canção percebemos versos que remetem à Glória da primeira banda de Van Morrison, o Them. É e não é a mesma canção, é e não é um manifesto beatnik, é e não é rock puro e simples. É agora uma locomotiva embalada descarrilando na sua cara quando do verso de conquista à mulher, o cheiro de cortiço exalando pelos sulcos do vinil, Patti Smith soletra e berra as iniciais da música no refrão: G - L - O - R AIAIAIAIAI, G L O R I A! G L O R I A!

O êxtase libertador desse refrão não diz respeito apenas à um flerte na rua, mas como toda boa poesia há várias camadas de significado e interpretação. É a libertação do rock para voltar ao básico, a libertação da mulher num meio misógino, a libertação da poesia num gênero considerado “burro” e “sem significado”, principalmente o nascente punk rock.

Conscientemente ou não, tudo em Horses é e não é punk ao mesmo tempo. Há o despojamento completo da capa, de uma simplicidade espartana, mas que só acrescenta um ar “cool” e estiloso das ruas de Nova Iorque. Há a produção simples, direta e crua de um dos pais do punk, o escocês John Cale, mas há também elegância e elaboração que contrastam com seus pares punk da mesma época (há que se ressaltar também que nenhuma banda punk da cena do CBGB se parecia uma com a outra, mas isto é para outro momento). Não se pode descartar, também, a estrutura livre e a longa duração das canções, que as aproximaria perigosamente dos excessos do rock progressivo. No entanto, não há gorduras em Horses, mesmo em músicas que ultrapassam facilmente os quatro minutos de duração.

Apesar de ser um disco de estreia, Patti Smith não era uma novata do meio artístico. Além de ter se relacionado com o fotógrafo Robert Mattlehorpe (responsável pela foto da capa de Horses), já havia escrito artigos nas revistas Creem e Rolling Stone e era figura conhecida no circuito alternativo, onde declamava suas poesias em forma livre com o acompanhamento do guitarrista Lenny Kaye (que figura em Horses, balançando entre a crueza do rock de garagem e os drones hipnóticos e fantasmagóricos extraídos de sua guitarra). Lou Reed, impressionado com o que ouvira em Piss Factory, compacto lançado de forma independente em 1974, é quem faz a ponte para que a Arista Records aceitasse gravar o disco da Patti Smith Band.

A semente de Piss Factory se prolifera como erva daninha em Horses, aliando fúria, lirismo, uma verve poética que se balança entre o terno, o surrealismo e a resposta direta das ruas. Além da carta de intenções da primeira faixa, ouve-se ainda o reggae que sonoramente parece despojado mas contém uma história trágica de separação à força por um suicídio em Redondo Beach; a história de delírio de um filho que perde o pai em Birdland que alterna rimas secas e um refrão bombástico; presencia-se à homenagem deliberada a Sister Ray dos Velvets na grande suíte de degradação de Land: Horses/Land of a Thousand Dances/La Mer (De), culminando numa despedida fantasmagórica e sentida dos amigos que se foram, oferecendo a eles o último trago.

Horses imediatamente foi aclamado pela crítica e, embora tenha vendido modestamente, foi abraçado pelos seus pares de cena e é uma obra que expandiu os limites e as possibilidade do gênero punk, assim como Dylan havia feito anos antes com o rock e o folk. E sendo punk ou não, poético ou não, o que fica em primeiro lugar é o poder da integridade e sinceridade do que sai das caixas de som. Não importa a música e as letras sem a verdade do artista se descortinando à sua frente. Em Horses e em Patti o espírito é livre e aberto e como ela menciona em Gloria: “Palavras são apenas regras e normas para mim, para mim.”

Nota: 10/10






sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Marvin Gaye - Here, My Dear


Ano de lançamento: 1978


Rafael:
Em nossos relacionamentos todos passamos por momentos bons, paixão, romantismo, amor e por momentos ruins, conflitos, brigas e separação. No universo da música pop são temas que foram eternizados em grandes clássicos e hits, nada fora do normal quanto a isto. Mas o que dizer de um disco (duplo) inteiro dedicado ao fim de uma relação?

Na década de 70, Marvin Gaye viu o céu e o inferno: ao passo que era exaltado como o gênio e a força criativa que conseguiu mudar o modus operandi da “máquina de hits” da Motown com seu libelo anti-guerra “What´s Going On?” e sua ode ao amor e à liberdade sexual em “Let´s Get it On”, se via cada vez mais afundado em drogas, dívidas (seu contador chegou a relatar que gastava 500 dólares por dia em cocaína) e na promiscuidade de relações extraconjugais. O desgaste de seu casamento com Anna Gordy, irmã do presidente da Motown Berry Gordy, era inevitável. Marvin ainda seria procurado pela justiça por não pagar pensão para seu filho. Sem escapatória, aceitou a proposta de seu advogado para resolver a questão: para pagar o que devia no divórcio, metade dos royalties do seu próximo disco deveria ser repassado à Anna e seu filho.

O impulso inicial era a auto-sabotagem. Desmotivado, ressentido e furioso, não via sentido em se dedicar. No entanto, sentia que devia aos fãs algo de qualidade. E da amargura e ressentimento veio o impulso para ter sua vingança em forma de música: “Here, My Dear”, o álbum que seria sua escapatória da cadeia, sua salvação para as dívidas, é o relato amargo, direto e de peito aberto da deterioração da relação de Gaye e Anna até culminar no divórcio. As pessoas se fascinam hoje em dia com reality shows? A exploração voyeurística sádica de uma relação foi antecipada em décadas nos sulcos desse álbum, sem censura nem pudor.

A mensagem não é sutil: logo na capa vemos a fachada do que seria um tribunal e estátuas no estilo romano; no verso, um tabuleiro com um jogo chamado “Julgamento” e diversos itens “partilhados” na separação. Os nomes das músicas são praticamente um recado direto à Anna, como “I met a little girl”, uma lembrança agridoce de quando se conheceram em 1964 e a análise sádica desse mundo ruindo em 1976; ou “When you did stop loving me, when I did stop loving you?”, um lamento sentido sobre a frustração de não ter dado certo no final; ou ainda, pura e simplesmente “Anger”, uma reflexão sobre os sentimentos ruins que surgem nesse momento e como isto pode fazer mal para ambos. Por outro lado, o instrumental segue o estilo funky, sinuoso e suave, sua marca registrada desde “Let´s Get it On” e o alto padrão de qualidade exibido na década se mantém aqui e serve como um verniz para tentar amenizar as diversas farpas encontradas no meio do caminho.

De fato, não se deixe enganar pelas melodias assobiáveis e o suíngue insinuante, pois as letras cortam como navalha e não há papas na língua. Pela primeira vez Marvin Gaye era responsável por todas as letras, não apenas se expondo, mas fazendo uma análise distanciada e minuciosa do que fez ruir sua relação com Anna. Ele também expõe seus sentimentos de forma sincera, exibindo o remorso das coisas terem ido por esse caminho destrutivo.

“Here, My Dear” não foi bem recebido pelo público e críticos à época do lançamento. Muitos consideraram bizarra essa exposição tão sincera e direta e a rejeição pelo álbum fez com que Marvin Gaye e a Motown não se dedicassem na promoção do disco, encerrando a divulgação em pouco tempo. Os problemas de Marvin apenas agravaram, culminando no seu assassinato, cometido pelo próprio pai.

Recentemente “Here, my dear” é considerado o grande clássico subestimado de Marvin Gaye e um dos grandes álbuns confessionais já feitos, estando lado a lado com obras como “Plastic Ono Band”, de John Lennon, “Blue” de Johnny Mitchell ou “If I Could Only Remember My Name” de David Crosby dentre outros que conseguiram extrair da dor, da perda e do sofrimento verdadeira arte.

Nota: 9/10



Felipe:
Marvin Gaye sempre gravou discos como se quisesse comer o ouvinte. E geralmente ele comia mesmo. Porém, mais do que comer, em Here, My Dear Gaye parece querer fazer amor com o ouvinte, sob a iluminação difusa de velas aromáticas, o perfume de pétalas de rosas espalhadas sobre a espuma de uma banheira com sais efervescentes e o sabor de um bom Cabernet Shiraz envelhecido em barris de carvalho.

Apesar do clima, o álbum lançado em 1978 foi produzido em meio a uma fase de caos na vida pessoal do cantor. Gaye se separava de sua primeira esposa, que ficou com os royalties do disco pelo acordo do divórcio. Por isso, este documento de definição da fuck music e coletânea de orgasmos múltiplos em forma de soul, funk e jazz traz, paradoxalmente, letras que falam de separação e rompimento. Não é atoa que Here, My Dear foi considerado pela Rolling Stone o “álbum mais estranho da Motown”. 

Sabendo que a ex-dona patroa ficaria com a grana anyway, Gaye começou cantando sem paixão na produção. No entanto, ao longo do processo de gravação das faixas, o artista foi se envolvendo de tal forma com as canções que, segundo ele mesmo, cantou até drenar tudo o que tinha passado. As faixas botam pra fora toda a dor e raiva do divórcio, falando de medo, raiva, carinho e arrependimento: “Anger”, “When Did You Stop Loving Me, When Did I Stop Loving You", “You Can Leave, but It Going to Cost You”. 

A melhor faixa, "Is That Enough?", é a prova de que um artista precisa de conflitos para criar: um soul irresistivelmente funkeado, composto após Gaye retornar do tribunal cantarolando a melodia e improvisando parte da letra. Dá pra sentir a agonia dos eventos recentes na voz do cantor, enquanto ele reclama de ciúmes e de ter de pagar advogados; se considera um tolo ingênuo; pede um cigarro e pergunta ironicamente se ficar com ela a vida inteira e fazê-la feliz não seria suficiente. 

E, como na época as capas, contracapas e encartes dos álbuns eram tão importantes quanto a música (se hoje nem a música importa mais, imagine capas e encartes. Contracapa então deve ser uma palavra que a geração atual sequer conhece), Gaye encomendou uma arte grandiosa em que aparece pintado usando uma toga romana, na frente de um templo com palavras como “matrimônio”, “dor”, “divórcio” e “julgamento”.

O álbum não foi bem recebido nos anos 70, considerado bizarro e anticomercial. Com a recusa de Gaye em divulgar o disco, a Motown parou de investir em promoção cerca de um ano após o lançamento, quando o artista pirou e entrou num autoexílio que culminou na separação de sua segunda esposa. É isso mesmo, separação da segunda esposa. Vivendo e não aprendendo. 

Marvin Gaye sempre vai ser lembrado por clássicos como Let’s Get it On e Sexual Healing – bem como por sua morte trágica. Mas Here, My Dear é a soul music em seu momento mais sombrio, profundo e pessoal, a ponto de a ex-esposa processar Gaye por invasão de privacidade ao expor sua intimidade para o mundo nas canções. Mas não era o dinheiro do disco que ela queria? Here, my dear, here it is.

Nota: 9/10


OBS.: infelizmente não há vídeo disponível no Youtube. As malditas gravadoras, em pleno 2016, acreditam que esta é a melhor forma de fazer com que as pessoas sejam forçadas a comprar um disco e ouví-lo.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Mad Season - Above


Ano de lançamento: 1995

Felipe:
O rock n’ roll tem um histórico considerável de chamados “supergrupos” formados por integrantes de outras bandas já renomadas. Do Cream ao Dirty Mac; de Crosby, Stills, Nash e Young ao Rockestra ou aos Traveling Wilburys, toda fase do rock já teve grandes heróis reunidos numa espécie de versão junkie dos Superamigos.

No que diz respeito ao grunge, o supergrupo mais conhecido é o Temple of The Dog (Pearl Jam e Soundgarden reunidos numa homenagem ao vocalista do Mother Love Bone, morto por overdose de heroína). Mas foi o Mad Season que lançou um dos álbuns mais subestimados dos anos 90: Above, de 1995.

Quando Mike McCready, guitarrista do Pearl Jam, foi internado numa clínica de reabilitação, conheceu um músico local chamado John Baker, com quem passou a fazer jams. Logo, convidou o baterista do Screaming Trees, Barret Martin, e o vocalista do Alice in Chains, Layne Staley, que também pelejava contra seu vício heroína, para formarem o Mad Season. O nome da banda faz referência à época do ano em que os cogumelos alucinógenos florescem com abundância, para a alegria dos entusiastas da psicodelia advinda da matéria fecal bovina.

E é isso mesmo que o Mad Season era: um supergrupo de drogados da pior espécie, que talvez só encontrasse paralelo na lendária Whores of Babylon, banda formada por Johnny Thunders, Stiv Bators e Dee Dee Ramone e que, obviamente, não deu certo. Se bem que a linha de frente do Dirty Mac (Clapton, Lennon e Keith Richards) também é um case de sucesso no abuso de substâncias derivadas do ópio.

Apesar de tudo, a banda criou um som de altíssima qualidade, misturando blues, hard rock e a tortura que habita a alma de todo grunge que se preza. Seu único álbum de estúdio é a pérola obscura de uma década que virou a música de cabeça pra baixo.

Wake Up e River of Deceit são duas faixas muito bonitas, apesar de mortas. I Don't Know Anything e Lifeless Dead, mais agressivas, dão uma acordada no ouvinte. I'm Above parece Led Zeppelin e conta com participação do vocalista do Screaming Trees, Mark Lanegan, assim como a estranha Long Gone Day, com instrumentos e levada atípicos do grunge.

Uma versão especial de Above ainda traz faixas ao vivo e uma releitura fodidamente boa de "I Don't Wanna Be a Soldier", de John Lennon. Não tem como deixar de mencionar as guitarras de McCready no álbum, que o elevam ao posto de um sucessor legítimo de Hendrix, solando uma stratocaster cujas notas parecem sair literalmente de sua alma.

Numa análise geral, o som se afasta do peso quase metal do Alice in Chains e do groove psicótico da primeira fase do Pearl Jam. Misturam canções tranquilas e blues sujos e até arriscam um saxofone. As letras de Staley são autobiográficas e deprimidas, falando de negação, abandono, suicídio, solidão e desapontamento. “Minha dor é por opção própria”; “O rio da decepção puxa tudo pra baixo”; “Por que temos que viver em tanto ódio todo dia?”; “Eu não sei de nada, eu não sei quem eu sou”; “Suicídio lento não é a forma de tudo acabar” e “Por um pouco da paz de Deus você suplica e implora” são alguns versos que ouvimos em Above. 

Muita gente se pergunta: do que essas bandas tanto reclamavam? Afinal, trata-se de uma geração que não viveu uma guerra mundial, não passou por situações extremas como racionamento de comida e mal tinham saído das fraldas quando o planeta correu o risco real de ser dizimado por uma guerra nuclear.

Sua insatisfação era outra, diferente, por exemplo, da dos punks. Se Ramones, Clash, Pistols e Dead Kennedys faziam música para outsiders, o grunge era escrito para pessoas socialmente incluídas, mas que ainda se sentiam insatisfeitas. As canções traziam umanecessidade de descobrir onde foi que a sociedade errou e o motivo de não viverem o que lhes foi prometido.

Sem ter a pretensão de aprofundar sociologicamente no assunto, é preciso lembrar que esses caras nasceram nos anos 60. Seus pais foram os babyboomers, nascidos na euforia do final da Segunda Guerra e adultos em meados dos anos 60 e 70, época do auge do rock, quando a música tinha relevância para tentar corrigir os erros do mundo. Em seguida, esses pais cresceram e deram ao mundo anos de Nixon, Reagan e Bush.

Buscando muito superficialmente alguma razão pra essa epidemia de jovens depressivos, é óbvio que a geração dos anos 90 cresceu em meio a essa falha na revolução proposta pelos pais, a uma sociedade conservadora e a uma exposição midiática repleta de produtos culturais cretinos. E se sentiu traída.

O grunge, até sem perceber, falava dessa experiência e tentava lidar com o sentimento de despropósito com as coisas ao seu redor, por meio de músicas niilistas que celebravam a própria dor, assim como fizeram antes os pós-punks da não menos nublada Inglaterra. Some tudo isso ao tédio, ao clima sempre chuvoso de Seattle (índices de suicídio são sempre maiores em locais de clima ruim) e muitas drogas e você terá uma combinação letal.

Tão letal que o Mad Season acabou em 1999, com a morte de John Baker. Em 2002, seria a vez de Layne Staley, ambos por - uma agulha, uma seringa e uma colher pra quem adivinhar - overdose.

Nota: 9/10



Rafael:
Ao mesmo tempo que o Pearl Jam atingia seu auge criativo, de sucesso e aclamação da crítica em 1994 com o álbum “Vitalogy”, as sessões de gravação foram tensas o bastante para quase acabar com a banda na época. O guitarrista Mike McCready abusava das drogas e do álcool e se viu forçado a ir para um clínica de reabilitação em Minneapolis. Lá conhece o baixista John Baker Saunders, músico com tradição no blues e que passou por diversas bandas do estilo na cena de Chicago. Compartilharam na “estadia” na clínica gostos musicais em comum, como o apreço pelo rock clássico, e ,principalmente, pelo Blues do Delta do Mississipi. Esta era a centelha necessária para a formação do Mad Season. McCready chamou ainda seus amigos da cena de Seattle Layne Staley, do Alice in Chains, e o baterista do Screaming Trees, Barrett Martin. Layne era conhecido na cena pelo seu abuso de drogas e McCready acreditava que seria importante ter pessoas nas mesmas condições para ajudar na recuperação mútua.

Mais que um supergrupo, como era alardeado à época, Mad Season era uma terapia de grupo em forma de banda. Era de se esperar um amálgama do som de todas as bandas originais, mas não é isto que acontece em Above, único disco de estúdio do grupo. Há apenas um fiapo de referência ao grunge nas dinâmicas contrastantes de algumas músicas. No mais, musicalmente o álbum é construído sobre uma base sólida de blues, o estilo que McCready e Saunders tanto veneravam. O andamento do disco é lento, cadenciado, opressivo.

As canções são lamentos sombrios do âmago da natureza humana, um expurgo dos sentimentos negativos que dominavam não apenas àqueles da “terapia de grupo” mas também da Geração X, que sempre se via desiludida e apática à uma sociedade que não lhes correspondia. As letras, todas escritas por Layne, tem grande semelhança com o niilismo e o tom depressivo do Alice in Chains.

No entanto, nas anotações sobre a edição “Deluxe” de Above, em 2012, o baterista Barrett Martin dá outra visão do que foi a concepção do álbum e das pessoas ali envolvidas. Apesar de toda escuridão e sofrimento em suas letras, Layne não possuía apenas este lado sombrio. “Layne sentia profundamente que ele tinha uma mensagem espiritual para passar em sua música, mesmo se suas letras fossem sombrias. E isto ocorre porque a escuridão deve existir primeiro para que a luz surja em contraste à ela; os dois são partes inseparáveis de um mesmo contínuo”, apontava Martin, que ainda via que Staley “...existia numa realidade entre escuridão e luz, um lugar em que ele via ambos". Ele relatava com carinho também de sua relação com John Saunders, a pessoa que ao mesmo tempo puxava a banda para o peso e lamento do blues, mas que era uma pessoa dócil, gentil e de boas histórias sobre sua vida no mundo da música.

Esta visão de Martin faz rever o que algumas músicas podem significar realmente: do que parece ser um chamado ao suicídio em “Wake Up” pode ser um chamado para levantar a cabeça e seguir em frente; as mentiras e decepções em “River of Deceit” tem o ímpeto pela busca por sua verdade; “I´m Above” parece uma queixa pelo que passou, mas é uma afirmação positiva por um futuro melhor; “Long Gone Day” é uma súplica de rendenção aos céus, não uma desistência.

A nota triste é que sabemos que nem Staley, nem Saunders, conseguiram vencer seus demônios interiores, sua escuridão. Ambos sucumbiram ao vício em drogas, Saunders em 1999, Staley em 2002, mas deixaram em Above um testamento não para a entrega para a escuridão, mas para tentar enxergar e aceitar a luz, assim como dizem em “Long Gone Day”: “Eu temo novamente, como outrora, eu me perdi e peço a Deus que traga meu dia ensolarado”.

Nota: 9/10






terça-feira, 3 de novembro de 2015

Urge Overkill - Exit The Dragon


Ano de lançamento: 1995


Rafael:
O ano é 1994 e Pulp Fiction é lançado. Em seu segundo filme, Quentin Tarantino consolida o que veríamos ao longo de sua carreira: histórias e narrativas fora do comum, recheadas de referências pop e trilhas sonoras repletas de obscuridades e hits esquecidos que só seriam ouvidos em rádios universitárias de madrugada. Em meio a medalhões e raridades do passado, Quentin resgata uma cover fiel, mas anacrônica e, por isto, estranha, de uma canção de Neil Diamond, extraída de um EP de 1992 de uma banda cujo nome remeteria muito mais a representantes de Metal Britânico dos anos 80 que a uma banda de rock dos anos 90. “Girl, You’ll Be a Woman Soon” se torna hit, e o Urge Overkill poderia, enfim, ser abraçado pelo grande público.

A questão é que o grande público cria expectativas reconfortantes e simplistas. Óbvio que queriam variações sobre o mesmo hit. E o Urge Overkill não pode ser tomado tão somente por esta música. Formada no final dos anos 80, a banda tinha como integrantes principais Nash Kato (guitarras e vocais), Eddie “King” Roeser (baixo e vocais) e Black Onassis (bateria) e bebiam tanto da atitude “Do It Yourself” e a estética lo-fi do pós-punk e hardcore quanto dos grandes sons e riffs e da pompa e pose do rock de arena.

Até o momento da canção ter estourado, o Urge Overkill já havia lançado quatro álbuns e em Saturation, de 1993, ganham força dentro do circuito de rádios alternativas e consolidam sua reputação no circuito alternativo. Considerado hoje em dia um clássico perdido da década de 90, Saturation é uma celebração irônica da vida de popstars de uma banda que era tudo, menos isto. Grandes riffs, crescendos apoteóticos que mascaram temas sombrios e depressivos, tudo envelopado numa produção brilhante que remontava a quando bandas poser dominavam as rádios e a MTV. Da frustração do sucesso que não se concretizava nem com o impulso de um grande hit, do ímpeto de seguir suas convicções artísticas, do crescente abuso de drogas de Black Onassis e dos atritos entre Kato e Roeser nasce Exit The Dragon.

Ao pressentir que este álbum seria seu canto de cisne (uma verdade até 2004, quando a banda se reuniu novamente), Exit The Dragon é, também, um disco mais longo e experimental do que até então já havia sido feito. “Eu sou o mal do mundo” é a primeira frase dita logo no início do álbum, na tensa Jaywalkin’, e se estabelece um tom diferente do que já se esperaria da banda. O pessimismo e desilusão de Roeser é ouvido também no pastiche de metal de There´s no Place; o riff que remete à rock de arena contrabalanceado por uma letra claustrofóbica de pós-punk em Take Me; Tin Foil soa como um outtake perdido de Replacements; o arremedo de shoegaze na depressiva The Mistake, um pedido de socorro direto de Black Onassis para seus vícios (“Cuidado com a overdose” é entoado ao final do refrão). Nash Kato, por sua vez, arrisca mais no instrumental, mas não ameniza nos temas: há a ironia cafajeste sob a superfície descaradamente pop em Somebody Else’s Body (com direito a bongôs e naipes de metal escondidos sob o mix) e uma das frases mais sacanas que pode ser dita em um relacionamento: “Oh, querida, você é tudo para mim, mas de vez em quando eu preciso de mais e parece que quanto mais eu tenho mais eu quero”; a decepção com as pessoas, religião e a vida em geral no folk orquestrado de View of The Rain; a analogia de relacionamentos a jogos de tabuleiro em Monopoly (com a sacada dúbia de “Você é o seu próprio Monopólio” no refrão); e a conclusão agridoce de Digital Black Epilogue, uma versão para os anos 90 de “You Can´t Always Get What You Want”.

Com uma combinação estranha como essa, não era de se esperar menos que Exit The Dragon fosse visto à época como um suicídio comercial de uma banda que tinha apenas ensaiado uma decolagem na carreira. É fato também que foram fiéis aos seus ideais artísticos, para o bem e para o mal. Reuniram novamente nos anos 2000, já sem Black Onassis, e lançaram em 2011 um novo álbum, de forma totalmente independente. E esta é a verdadeira essência do Urge Overkill: mirar alto, tocar como se fossem grandes, mas admitir que, na verdade, seu som é para poucos. E esses poucos agradecem que assim seja.

Nota: 9/10


Felipe:
Nos anos 70, após a morte de Bruce Lee, o cinema oriental viu surgir um novo gênero conhecido como “Bruceploitation”: filmes de baixo orçamento, protagonizados por sósias do mestre das artes marciais e baseados em sua filmografia. Dentre essas “pérolas” do lado B da sétima arte chinesa, há o filme “Exit the Dragon, Enter the Tiger”, de 1976, protagonizado por um look-alike chamado – veja só – Bruce Li e baseado em “Enter the Dragon”, filme do Bruce Lee original de 1973. 

Em 1995, o Urge Overkill, banda de rock alternativo do guitarrista Nash Kato, fã de Bruce Lee - cujo próprio nome artístico foi inspirado no personagem do lutador na série de TV dos anos 60 “Besouro Verde” - lançou Exit the Dragon. Apesar do nome em referência ao colorido e divertido Brucepoitation, o álbum trouxe temas obscuros, como maldade, drogas e solidão. 

Numa primeira audição, o disco parece não convencer. Falta liga nas músicas, muito bem produzidas, mas meio sem sal. A faixa que abre o álbum, “Jaywalkin”, uma declaração de desilusão com o mundo e as pessoas (“Eu sou o mal nesse mundo, eu sou o mal em você, há muita maldade, é verdade, e não há nada que você possa fazer”) já mostra o que o ouvinte pode esperar das outras 13 músicas. 

O clima vai ser esse durante 61 minutos, como mostra a bela balada psicológica “Somebody Else's Body” (“...está terminado quando você está no corpo de alguma outra pessoa, na cabeça de outro alguém / no corpo de outra pessoa, quando eu estou com outro alguém/ quando você está no corpo de alguma outra pessoa, na cama de outro alguém”).

A segunda faixa, “The Break”, deve ser uma homenagem ao David Bowie, pois o riff é muito parecido com “Rebel, Rebel”. O Clash, por exemplo, já fez isso usando o riff (ou algo muito parecido) de "I Can't Explain” do The Who em “Clash City Rockers”.

"The Mistake" é outra faixa interessante, falando de drogas e alertando para o perigo real e muitas vezes ignorado de uma overdose (“Mistake / be careful what you take / You've got a lot at stake, more than you'll ever know / Beware the overdose, beware the overdose”).

A letra de “The Mistake” ainda menciona o tal dragão solto: “you'll never find the time for slackin', never gonna make it today, until you finally exit the dragon”. Vale lembrar que “perseguir o dragão” (“chasing the dragon") é uma gíria espalhada pelos junkies nos guetos de Hong Kong e adjacências, que significa usar drogas como heroína, morfina e ópio. 

Não fosse o tema, essa faixa poderia estar em qualquer álbum do Radiohead. Também parece Beatles, com direito a guitarra slide chorando gentilmente no estilo George Harrison, bateria hipnótica tipo Ringo Starr e piano maroto pontuando o refrão no melhor estilo Help e Rubber Soul, além dos vocais meio Thom Yorke meio Lennon/McCartney. 

O Urge Overkill vai ser sempre lembrado como “a banda da música do Pulp Fiction”, no caso, “Girl, You’ll Be a Woman Soon”. A canção de Neil Diamond passou a ser deles após a versão “definitiva” pro filme de Tarantino e, se não é uma pérola eterna do cancionário popular ocidental, certamente é no mínimo melhor do que tudo em Exit the Dragon.

Os maiores êxitos do álbum me lembram um Replacements num disco sem muita inspiração. Há boas canções que, isoladas, mereceriam bastante atenção. Em conjunto, elas meio que deixam a desejar. Ou eu posso simplesmente estar falando merda mesmo. Escute você e me diga o que acha.

Nota: 7,5/10








segunda-feira, 12 de outubro de 2015

The Dictators - Bloodbothers


Ano de lançamento: 1978


Felipe:
Quando os Dictators fizeram uma turnê na Inglaterra, tiveram uma experiência inesquecível para qualquer fã de rock. Estiveram no epicentro da bomba atômica musical que explodira no país em 1977; respirando o auge do movimento punk que ajudaram a conceber pouco tempo antes no CBGB e recebendo cusparadas de aprovação por parte de exigentes plateias sedentas por música raivosa.

Voltaram pros Estados Unidos e gravaram um disco “mais rápido e mais alto”, aproveitando a onda e até mesmo se apropriando de elementos do punk inglês, sem deixar de ser uma das bandas mais americanas que já jogaram no time do panteão do rock n’ roll, ainda que como reservas de um campeonato da terceira divisão.

Estamos falando de Bloodbrothers, de 1978, terceiro álbum da seminal banda de Nova York, considerada o elo perdido entre o protopunk e o punk rock propriamente dito. Se formos considerar o protopunk como a safra dos Stooges, MC5 e New York Dolls e punk como o que veio em seguida, com a galera do CBGB (e os fanzines e as roupas e as casas noturnas e as tretas e os axiomas como o “do it yourself”, o “i don’t care” e, logo depois, o “no future”, entre outras coisas), os Dictators são considerados a primeira banda punk a gravar um álbum - Go Girl Crazy, de 1975.

Corrija-me se eu estiver equivocado, mas o primeiro dos Ramones, colegas de palco e amigos próximos dos Dictators, só saiu em 1976. Antes disso, oficialmente em um registro gravado em estúdio e lançado por uma gravadora, o vocalista louco e gente fina Handsome Dick Manitoba já cantava sobre vomitar McDonalds, beber cerveja o dia inteiro e assistir filmes B. Já em seu primeiro disco, os Dictators traziam porradas punks, surf music e um cover açucarado de Sonny e Cher, mesmo tipo de senso de humor estranho que seria a cartilha que os Ramones seguiriam até o final da banda, nos anos 90.   

Já em Bloodbrothers, eles parecem tentar ser levados mais a sério como punks. Desde a capa, que retrata a banda como uma gangue esperando pra pegar alguém em uma rua escura; ao nome do álbum, que passa a ideia de unidade que os Ramones, por exemplo, conseguiam transmitir com sucesso. 

O disco abre com a melhor faixa – e uma das melhores faixas de qualquer banda punk e uma das melhores faixas de qualquer banda de rock n’ roll – Faster & Louder, cuja introdução gritada de "1-2-1-2-3-4", fica por conta de Bruce Springsteen, grande admirador do grupo até hoje.

Baby, Let's Twist é outro destaque, que não deixa as influências sessentistas se perderem na poça de vômito alcoólico. The Minnesota Strip é, se não um avô, pelo menos um tio do Metallica, com introdução heavy metal no estilo Cliff Burton, que de repente vira um hard rock safado falando de strippers (“Hey, hey, who’s your daddy little girl?”). 

Ainda destaco o power pop afetado e anfetaminado de Stay With Me e o rock estilo Chuck Berry do Bowery (Chuck Bowery?) Borneo Jimmy, ambas com ótimas guitarras e refrão grudento.

Abro somente uns parênteses para No Tomorrow, que soa forçada e uma tentativa de agradar o público pós-77, acostumados com a filosofia “no future” do punk inglês e I Stand Tall, uma baboseira patriota exaltando as maravilhas de ser norte-americano. Pelo menos eles tinham orgulho de quem eles eram.

Mesmo que soe como um disco ao vivo, Bloodbrothers é um álbum bem tocado e bem produzido, de um grupo de heróis não muito conhecidos pelo público geral. Quatro décadas depois, a maior importância dos Dictators pra muita gente ainda é ser a evolução do MC5 no genoma do rock n’ roll.  O que pra mim já tá bom pra caralho. 

Nota: 8,5 ou quase 9 / 10



Rafael:
Ter um blog como este é, ao mesmo tempo, uma massagem no ego de seus escritores e, também, um trabalho sincero de resgate do que humildemente acreditamos que valeria a pena que todos ouvissem e que ninguém se importa agora. Pode soar batido com o que já disse anteriormente, mas sempre há algo, de qualquer época, que valha a pena ser ouvido e que a história soterrou solene e injustamente.

É o caso deste Bloodbrothers, terceiro disco dos Dictators. Como é? Nunca ouviu falar do disco, muito menos da banda? Pois é, e assim caminha a humanidade. Num mundo "justo", estariam lado a lado com nomes constantemente celebrados da cena punk e do CBGB. Pode ser pela aparência "comum" dos integrantes, um misto de estivadores com integrantes de gangues de Little Italy, ou o senso de humor considerado de gosto duvidoso, ou até mesmo pode ser devido ao som simples, básico, cru e direto, uma anomalia numa cena em que bandas como Talking Heads, Television e Blondie faziam parte.

A questão é que, independente dos motivos, os Dictators ficaram relegados ao segundo plano da cena punk. Outro fato esquecido e digno de nota e que ninguém se lembra mais é que o marco inicial do movimento punk é o primeiro disco dos Dictators, Go Girl Crazy!, e como este álbum foi influente para os demais músicos na cena. 

No momento do lançamento de Bloodbrothers a cena punk já estava estabelecida e a banda decidiu reduzir o humor e sarcasmo presentes no disco de estreia e deixar mais clara sua pose de gangue pronta pra briga (que já se inicia na capa, na situação “pode vir que estamos preparados”). O período entre 1975 e 1978 foram cruciais também para trazer mais entrosamento e profissionalismo ao grupo. As canções em Bloodbrothers são mais bem produzidas, bem acabadas e diretas. Gravado ao vivo, reflete a sensação de se presenciar um show direto da “fila do gargarejo”.

Logo de início ouvimos ao fundo a contagem de Bruce Springsteen, fã declarado da banda, para a pedrada inicial de Faster & Louder, uma carta de intenções onde “se toca, dança, vive e é mais rápida e barulhenta”. Na sequência há a corruptela safada de Louie, Louie com um “bridge” que remete à Baba O’Riley do Who, em Baby Let´s Twist. Ouvimos ainda a marca clássica do niilismo e revolta punk em No Tomorrow, a ode ao prazer fácil e descartável da prostituição em Minesotta Strip e o ritmo segue frenético até culminar no ponto alto (e final) do álbum: a inspirada cover anti-drogas dos também subestimados Flamin' Groovies, a pesada e intensa Slow Death.

O álbum, no entanto, não teve sucesso algum e a banda se separou um ano depois. Reuniram novamente nos anos 2000, lançando bons discos que apenas completistas, fãs e amantes da boa música ouviram. E puderam presenciar neste meio tempo a triste ironia de que a grande maioria dessas bandecas de quinta categoria que se consideram punks fazem sucesso copiando descaradamente o que já se ouvia em Bloodbrothers. Se há algo que você possa fazer agora para reparar este erro histórico é tirar a bunda da cadeira e ouvir este disco. Já!

Nota: 9/10








sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Sly & Family Stone - Greatest Hits


Ano de lançamento: 1970


Rafael:
Aposto que, assim como meu comparsa de blog, você, nobre leitor, deve estar se perguntando porquê escolher uma coletânea para ser resenhada aqui.

Coletâneas vêm e vão, sempre são "atualizadas" e são utilizadas na maioria das vezes pelas gravadoras como caça níqueis fáceis de capitalizar sobre fãs ardorosos e aqueles "que gostam daquela música que toca na novela" e que querem só ouvir os grandes hits que tocam na rádio.

Com esse Greatest Hits do Sly and Family Stone não é diferente. Elaborado para cobrir um período em que não sairia material novo após o sucesso estrondoso de Stand! em 1969 e a apresentação monstruosa do grupo em Woodstock, essa coletânea tinha a intenção puramente mercadológica. Pode ser o alinhamento dos astros no dia da seleção das músicas ou simplesmente era a nata da produção artística de Sly and Family Stone à época, mas, de um propósito comercial, surgiu uma obra de alto valor artístico.

Para quem não conhece, Sly and Family Stone era a epítome dos ideais hippies e de Martin Luther King em forma de banda e música: um grupo multi-racial (o primeiro no universo pop) que fazia uma mescla perfeita de rock, psicodelia, soul, funk. E mesmo tendo músicas de clima otimista e felizes, sempre levavam mensagens de conscientização social e política.

E em Greatest Hits encontramos a sumarização perfeita dessa primeira fase da banda. Ou melhor ainda, julgo este ser o disco perfeito para uma festa. Tendo início no arrasa quarteirão de "I Want to Take You Higher", o ritmo dançante só desacelera para baladas " inevitáveis " como a singela "Everybody is a Star", a humanista "Everyday People" e o doo wop com clima de um parque sábado à tarde de "Hot Fun in The Summertime" (uma resposta velada aos incidentes raciais em 1968).

Há ainda o ar épico que culmina num gingado funk em Stand!, a obviamente dançante (e empolgante! Sério, duvido que você não mexa nem um dedo ao ouvir) "Dance to The Music" e a primeira incursão do grupo no deep funk em "Thank You (Fallentime Mice Elf Again)".

É neste álbum que terminava, também, o grupo como todos haviam aprendido a amar e, dentro de um ano o que se ouviu em "There's a Riot Goin On" era a total negação do clima festivo, da celebração da vida e da comunhão entre as pessoas em prol de um mundo melhor. Era outro clássico que se descortinava ali, um tapa na cara pra encarar outros tempos menos coloridos.

Mas em tempos sombrios e opacos como este em que vivemos é fundamental ouvirmos esse Greatest Hits e lembrarmos que a vida pode ser mais simples, a felicidade pode ser contagiante e a utopia por um mundo melhor, é necessária e pode deixar de ser utopia um dia.

Nota: 10/10



Felipe:
Enquanto coletânea, Greatest Hits supostamente traz um apanhado do que o Sly and the Family Stone produziu de melhor até 1970. O grupo de soul psicodélico e funk liderado por Sly Stone poderia ter sido o que o MC5 foi nos anos 70 e o Rage Against the Machine foi nos 90’s. Potencial eles tinham. E meio que acabaram sendo. No entanto, não é exatamente isso que Greatest Hits nos apresenta.

Geralmente, o nome da banda vem associado ao álbum seguinte, o mais obscuro There’s a Riot Goin On, resposta raivosa e sagaz para a pergunta que dá título ao clássico álbum de Marvin Gaye, What’s Goin On, lançado poucos meses antes. Sim, havia uma revolta rolando, e o Family Stone era parte legítima da série de ícones culturais do movimento negro norte-americano, numa época em que a sociedade estava em ebulição como uma banana de dinamite nuclear, cujo pavio se aproximava rapidamente do fim.

Havia o Partido dos Panteras Negras - organização política extraparlamentar (paramilitar?) socialista revolucionária norte-americana, ligada ao nacionalismo negro. Luther King havia sido assassinado há pouco. Na última edição das Olimpíadas, dois atletas negros norte-americanos, após receberem suas medalhas no pódio, levantaram os braços esticados com as mãos cobertas por luvas negras e punhos fechados (a saudação black power dos Panteras Negras), em protesto pela segregação racial e apoio aos movimentos negros, e abaixaram a cabeça enquanto seu hino nacional tocava no estádio, sendo expulsos da delegação americana após o ato.

O super-herói Luke Cage, nascido nas ruas do Harlem e ex-membro de gangue, logo seria criado pela Marvel Comics, que já tinha seu representante do movimento, o herói Pantera Negra, príncipe regente do reino africano fictício de Wakanda e membro dos Vingadores nas horas vagas. A treta entre brancos e negros, que se arrastava há tempos, inspirava todo tipo de lunáticos, terroristas, psicopatas e racistas. Charles Manson acreditava que os Beatles incitavam uma guerra racial em Helter Skelter, e cometia assassinatos brutais em nome da "causa". Enfim, os EUA viviam um "caos total" e os negros já não pensavam duas vezes antes de se levantar e partir pra briga quando oprimidos.

Mas o que podia ser um RATM sessentista, espécie de MC5 negão, até então seguia um caminho mais ensolarado e hippie. Em Greatest Hits, a utopia musical de Sly Stone – e Luther King e Xavier - com uma irmandade interracial convivendo pacificamente num grupo formado por homens e mulheres, brancos e negros, está mais pra uma cena gigante de Hair.

Misturando as batidas mais pesadas de funk com a psicodelia paz e amor típica do final dos anos 60, Greatest Hits soa datado. Aos meus ouvidos não envelheceu muito bem, diferente de coisas parecidas, como James Brown, Otis Redding e Tim Maia.

Apesar disso, o disco tem grandes momentos, como Thank You (Falettinme Be Mice Elf Agin). Confesso que levei uns dias pra entender a viagem do título. Inicialmente, achei que pudesse ser um dialeto africano, sei lá, mas é um tipo de spoken english pra “for let me be myself again”. Admito minha burrice.

Mesmo sendo uma coletânea, o disco entrou na lista dos 500 maiores álbuns de todos os tempos da Rolling Stone, ocupando o número 61. E como qualquer coletânea, vale a pena pra quem pretende começar a conhecer o grupo.

Nota: 7/10





sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Black Sabbath - Black Sabbath


Ano de lançamento: 1970


Felipe:
É público e notório que o Heavy Metal começou no início dos anos 70 com a trindade diabólica Led Zeppelin / Deep Purple / Black Sabbath. Essas bandas desenvolveram um som encorpado e distorcido, com riffs pesados e sonoridades em tons menores e sombrios, com muitas referências ao ocultismo. Mas dos três grupos ingleses, o Sabbath é o mais identificado com o gênero, considerado o primeiro de metal propriamente dito. E foi em Black Sabbath, álbum homônimo de estreia, que o fogo do inferno começou a incendiar de verdade a porra toda.

Em pouco mais de meia hora, quatro rapazes ingleses de origem pobre, com péssimos empregos e sem perspectivas de futuro, pegam o que havia de mais sinistro no blues e criam todo um universo macabro, influenciados por filmes de terror. “Black Sabbath” é o título de um filme com Boris Karloff, que no Brasil se chama “As Três Máscaras do Terror”.

Se formos dissecar o Heavy Metal do Sabbath pra trás, em ordem cronológica, vamos encontrar os riffs de blues pesado do Cream (quantas vezes já vi gente ouvindo Cream e confundindo com Black Sabbath?); Jagger tirando a camisa em Rock n’ Roll Circus e exibindo o corpo pintado com figuras demoníacas enquanto cantava Sympathy for the Devil; Joe Cocker possuído em Woodstock berrando With a Little Help From My Friends; o trítono de Hendrix em Purple Haze; os Beatles mandando tudo à merda em Helter Skelter – uma das canções mais pesadas já gravadas por uma banda até então; a microfonia do Who quebrando os instrumentos no palco; Steppenwolf e seu “heavy metal thunder”; os Beatles de novo ao incluir Aleister Crowley entre seus ídolos na capa de Sgt Pepper’s e os Stones com Paint it Black, até chegar nos bluesmen da Chess e, mais pra trás, em Robert Johnson caindo de joelhos numa encruzilhada fazendo um pacto – que seria cobrado - com as forças das trevas.

Voltando mais ainda, vamos encontrar escravos chicoteados e estuprados entoando cânticos e spirituals no sul dos Estados Unidos ou em navios negreiros. Pode-se até chegar na África, onde sons de ritos tribais invocavam sabe-se lá que tipo de capeta. A sacada genial de Ozzy e cia foi pegar tudo isso, incluir mais mitologia, misticismo, roupas pretas e cruzes invertidas e falar diretamente para uma geração fodida que começava a sofrer as consequências da Guerra do Vietnã e do fim da utopia dos anos 60.  

A polêmica começa na capa: a foto de uma mulher macabra em frente de uma casa velha ainda mais sinistra. Pra piorar, não se sabe nada sobre o fotógrafo nem sobre a estranha figura feminina, que parece uma bruxa parada entre as árvores de um bosque. Medo. Os caras foram tachados de anticristos, pois o encarte interno trazia uma cruz invertida e um texto que evoca espíritos e bruxaria, fazendo referência à mulher da capa.

O álbum abre com o som de chuva e sinos tocando, seguido do riff sinistro da canção também homônima (na verdade a música deu o nome à banda). E a capetice tem início, com Ozzy falando sobre uma “figura de preto” que aponta pra ele com olhos de fogo e o sorriso de Satã. Depois lamenta, repleto de medo e lamúria: “Oh não, Deus, por favor me ajude!”.    

The Wizard é uma blueseira com Ozzy tocando gaita. Lembre-se de que o Sabbath era inicialmente uma banda de blues.  Outro destaque é, claro, “N.I.B.", verdadeiro hino do rock n’ roll e grande clássico da banda. A letra fantástica traz uma declaração de amor em primeira pessoa, em que a pessoa amada deve esquecer a vida que teve antes de encontrá-lo, apenas para, no último verso, ouvirmos: “Meu nome é Lúcifer, por favor, pegue minha mão”.

Com tanta vibração ruim, o álbum fez com que uma legião de malucos, pseudobruxos, membros da família Manson e lunáticos em geral levassem tudo a sério e seguissem a banda de cidade em cidade, com oferendas, sangue e bichos mortos. O que irritava profundamente os caras, que estavam mais preocupados - segundo eles – em cheirar o máximo de cocaína e beber o máximo de álcool que a vida de rockstar pudesse proporcionar.    

De qualquer forma, Black Sabbath é um dos discos mais importantes de todos os tempos. Uma dica: escute-o assistindo o filme “A Noite dos Mortos-Vivos”, de George Romero, filme de terror independente de 1968 em preto-e-branco. Coloque o filme no mudo, o disco no máximo, apague a luz e faça a cabeça. Mais cool impossível. Só não garanto que você vai dormir depois.

Nota: 10/10



Rafael:
Falar sobre mitos é difícil. Mitos parecem ter saído do éter como se sempre existissem. Tem-se a impressão de que todos sabem, todos conhecem e tudo foi falado a respeito. Tem contornos de obras feitas por deuses, não por humanos. Assim é a história do nascimento do primeiro álbum do Black Sabbath, uma história construída por quatro jovens desacreditados e pessimistas de Birmingham, Inglaterra, e que, inconscientemente criaram com um disco e sete músicas um gênero musical novo.

Assim como numa boa mitologia como a de Hércules, o álbum foi gravado em 12 horas. Para acrescer ao mito, lançado numa sexta-feira 13 de 1970. Hard rock até aquele momento não era novidade: a juventude ansiava por um som mais pesado, agressivo e denso que refletisse suas angústias e descontentamento com o fim do sonho que John Lennon havia dito em "God". Led Zeppelin, Cream, Jimi Hendrix, Deep Purple, Blue Cheer, todos já haviam gravado discos de rock pesado. Mas o Black Sabbath levou o Hard Rock por um outro caminho que seus pares, um caminho lógico mas que ninguém enxergava: engoliram e desconstruiram blues e jazz e disfarçaram o pop com um manto negro.

De suas deficiências, a inventividade: o fato de Tony Iommi ter perdido a ponta dos dedos da mão direita num acidente numa fábrica fizeram que ele mudasse a afinação da guitarra para conseguir tocar. Isto contribuiu para que surgisse um som massivo e pesado distinto de seus pares nos anos 70. Gezze Butler era um " baixista improvisado" à época e como não sabia fazer linhas melódicas próprias de baixo, "seguia" o que Tony estava fazendo, adicionando, também, mais peso ao som. O que faltava a Ozzy Osbourne em qualidade vocal era compensado pela sua interpretação insana e presença nos palcos. E Bill Ward tocava sua bateria como se fosse um troglodita tocando   jazz.

O álbum se inicia ao som de chuva e sinos e o riff em trítono (que na era medieval era abolida das músicas por sua dissonância, que recebia o nome de Diabolus in Musica) na faixa que dá o nome ao disco e à banda dita o tom do que se ouvirá dali em diante: o medo e a adoração ao oculto, à magia e ao diabo. Marcante também é o solo de baixo que precede um dos riffs mais conhecidos e marcantes da história do rock em N.I.B; a gaita sinistra tocada por Ozzy na homenagem à Gandalf (quando Tolkien não era cool) em The Wizard e as covers de Evil Woman e The Warning que, dada a qualidade das versões, ninguém se lembra que não são músicas próprias do Sabbath.

Em seu ápice criativo (de 1970 a 75) o Black Sabbath aperfeiçoou o estilo Heavy Metal em Paranoid, aprofundou no soturno e na psicodelia macabra em Masters of Reality, moldou seu som para as arenas em Vol. 4, expandiu suas possibilidades sonoras no eclético Sabbath Bloody Sabbath e flertou com outros gêneros, como progressivo no paranóico Sabotage. No entanto, tudo isto tinha uma semente no monolito negro fincado na história da música pop que se ouve em Black Sabbath.

Nota: jura que precisa falar?