quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

The Clash - Combat Rock


Ano de lançamento: 1982

Felipe:

"Analisando breve e porcamente a discografia do Clash, o primeiro álbum foi a definição do punk 77 e do zeitgeist da juventude na Inglaterra pré-Thatcherismo: mal tocado, mal gravado, cheio de raiva e falando de temas como tédio e falta de oportunidades de emprego. O segundo, Give ‘em Enough Rope, manteve a pegada das ruas falando de brigas de gangues e problemas com drogas e polícia, mas foi bem produzido para agradar o público americano. London Calling foi a grande obra-prima e Sandinista! foi uma viagem tripla que até hoje não foi bem compreendida. O álbum de hoje, Combat Rock, é o canto do cisne – por mais clichê e detestável que o termo seja - da “única banda que valia a pena”.
Digo isso por considerá-lo a despedida do Clash, visto que a banda já se desintegrava e o álbum seguinte, Cut the Crap (esse sim o último da discografia) é uma bela porcaria que conta apenas com Joe, Paul e outros três inúteis contratados. O próprio Joe renegaria Cut the Crap até sua morte em 2002. Portanto, consideremos Combat Rock o “último” álbum do Clash.
A banda sempre foi engajada em questões políticas do terceiro mundo, e o álbum mostra o Clash bem afiado neste sentido. Produzido pelos próprios membros e por Glyn Johns (cujo currículo incluía Stones, Who, Kinks e Beatles), Combat Rock é pesado politicamente sem deixar de ser comercial.
É de se espantar a riqueza intelectual e o engajamento político que fluía nas letras de Joe aos vinte e poucos anos. Como Pete Townshend disse certa vez, “quando Joe Strummer falava, você calava a boca e ouvia”. O pai do compositor era indiano e trabalhava como diplomata nas ilhas britânicas, o que levou o líder do Clash a viver em meio a uma mistureba geopolítica desde criança, convivendo com culturas, explorações, preconceitos e problemas sociais de todos os tipos.
Joe nasceu na Turquia, no extremo ocidental da Ásia, e passou a infância no Egito. Seu irmão chegou a se afastar da família para aderir ao British National Front, partido político britânico de extrema-direita, racista, antissemita, que coopera com organizações neonazistas e é crítico da veracidade do Holocausto. Em seguida, o rapaz cometeu suicídio e o jovem Joe foi responsável por identificar seu corpo. Tudo isso deixou marcas na vida de Strummer, que cresceu obcecado por justiça social, vivendo por conta própria desde muito jovem e aderindo às causas dos oprimidos do mundo inteiro.  
Combat Rock já começa com o “serviço de utilidade pública com guitarra” Know Your Rights. Cínico e furioso, Strummer enumera os direitos do pobre cidadão trabalhador: “direito de não ser assassinado (a menos que seja por um policial ou aristocrata); direito a alimentação e renda (se você não se importar com um pouco de humilhação) e direito a liberdade de expressão (se você não for idiota o bastante pra tentar)”. Should I Stay or Should I Go? - maior sucesso comercial de uma banda extremamente anticomercial - é um rock competente, no estilo dos Stones, cantado por Mick Jones com backing vocals de Joe em espanhol.
Outra faixa fantástica é Straight to Hell, cujo ritmo, segundo o baterista Topper Headon, é uma bossa nova. Na época, a mídia entendeu a letra como uma referência à decadência da Inglaterra e à vergonhosa Guerra das Malvinas. No entanto, a canção aborda temas diversos: a condição política de El Salvador (na época uma junta militar derrubou o presidente e forças de oposição entraram em luta armada contra o governo); o preconceito contra os imigrantes na Inglaterra e também as centenas de crianças abandonadas no Vietnã, frutos de estupros cometidos por soldados americanos.
Combat Rock ainda traz Rock The Casbah, canção que se tornou popular apesar do tema complexo. Quando o aiatolá Khomeini tomou o poder no Irã, uma de suas medidas foi banir o rock n’ roll do país. Na música, o banimento é desafiado pela população. A letra não menciona explicitamente o Irã e inclui uma mistura confusa de termos árabes, judeus e norte-africanos, numa sopa de letrinhas cultural e dançante.  
Apesar da letra genial de Joe, a música é de Topper, que tocou todos os instrumentos. O clipe pra mim é um dos mais legais da história. Tomadas de playback mostram os integrantes vestidos de guerrilheiros numa estação de petróleo. Enquanto isso, um judeu ortodoxo e um árabe bebem a caminho de um show do Clash, sob os incrédulos olhos dos membros da banda, numa referência ao desejo de Joe com relação a algum avanço diplomático nas relações árabe-israelenses.  
Apesar da canção ser de Topper, no clipe vemos o baterista Terry Chimes, que o substituiu quando foi demitido devido a seu vício em heroína. Headon, num estado deplorável, abandonou a banda e logo depois foi preso por posse de heroína e cocaína. Solto em condicional, foi preso novamente após roubar um ônibus. Vale registrar que Chimes foi o primeiro baterista da banda. Quando perguntado qual seria sua primeira atitude se a banda fizesse sucesso, o músico respondeu que compraria um Cadillac. Isso foi suficiente para que o então quase stalinista Joe Strummer o demitisse. O Clash não era lugar para aspirantes a rock stars.
É verdade que o álbum oscila em alguns momentos. Mas, mesmo nas faixas em que eles acertam menos, as letras são do caralho. Red Angel Dragnet, escrita por Simonon, fala do movimento de voluntários que vigiavam as estações do metrô de Nova York, protegendo os passageiros de assaltos e violência. O que inspirou a musica foi a morte de um dos membros do grupo, ao defender uma garota de uma tentativa de estupro. A letra ainda faz referência ao personagem Travis Bikle do filme Taxi Driver. Ghetto Defendant conta com a participação do poeta beat Allen Ginsberg recitando um mantra budista.  
Apesar dos temas profundos e completamente alheios ao dia a dia do jovem branco de classe média, Combat Rock foi um sucesso comercial. A política não está ausente nem na arte do álbum, cuja capa mostra os quatro em uma ferrovia abandonada de Bangkok. Na contracapa, uma bíblia, uma arma e os dizeres “O futuro não está escrito”. Eles ainda incluíram num cantinho a sigla FMLN2, que significa “Frente Farabundo Martí para la Liberación Nacional”, partido socialista de El Salvador.  
Costumo dizer que, mais do que o rock, bandas como o Clash fazem a própria vida valer a pena. Ainda que ofuscado pela perfeição de London Calling e pela urgência do álbum de estreia, Combat Rock nos lembra, com tristeza, de que houve uma época em que a música significava alguma coisa para as pessoas."
Nota: 9/10

Rafael:
"No começo dos anos 80 o Clash aparentava se aproximar perigosamente das mesmas posturas e armadilhas daqueles que eram alvos de suas críticas no começo de carreira (leia-se bandas de hard rock, rock de arena e progressivo e toda pompa, glamour e estilo de vida destes rockstars no mainstream). Em uma análise superficial de Combat Rock se tem a impressão de que a banda, enfim, tinha se vendido ao sistema e à sua engrenagem mercadológica. O Clash, no entanto, não é banda de análises superficiais.
Desde a sua formação foi uma banda que sempre manteve sua ética punk, apesar (será que seria apesar?!) de não se ater EXCLUSIVAMENTE às características sonoras de uma banda punk clássica. Ao passo que os Sex Pistols sempre mantiveram o ataque feroz de guitarras sujas e vociferavam contra a rainha e às condições da classe trabalhadora e da juventude inglesa e os Ramones transportavam o Girl Group e a diversão do rock básico e cru para uma realidade suja e imersa em anfetaminas, o Clash expandia sua consciência política além dos problemas exclusivamente ingleses e, também, sua sonoridade, absorvendo ritmos até então desprezados por seus pares, seja por falta de habilidade seja por negação, como ska, reggae, pop, hard rock, R’n’B, etc

Em 1979 é lançado o grande clássico London Calling, em que a estética punk se merge à perfeição aos diversos gêneros pop existentes numa forma nunca antes igualada por uma banda punk. Acusados de megalomaníacos por muitos fãs e críticos por lançarem um disco duplo e por estarem “traindo” a causa punk, poucos sabiam à época do embate que o Clash travou com a gravadora para que o disco fosse lançado com o preço de disco simples, exatamente porquê sabiam que seus fãs não tinham condições de comprar um álbum duplo. O mesmo ocorreu, em doses cavalares, com o extenso e difuso Sandinista!, que era triplo e foi bancado pela banda para ser vendido como simples. O estilo punk e seus ideais estavam impregnados na vida dos integrantes da banda, não só no som, corte de cabelo ou roupas.

E qual não é a surpresa quando sai Combat Rock. Um álbum simples, com 12 faixas que parecem querer pegar uma carona oportunista na new wave, rap, reggae, electro-funk, como se fosse um movimento desesperado de uma banda ávida pelas paradas de sucesso. Ledo engano: é em Combat Rock que vemos a banda se aprofundar mais e de forma mais concisa e focada que em Sandinista! na fusão do punk com estilos diversos, ou melhor ainda, na abordagem punk dos diversos gêneros, seja o electro-funk acelerado de Overpowered by Funk, o new wave dançante e sarcástico de Rock The Casbah (adivinhe de onde vem o nome deste blog?!), o pop deslavado de Atom Tan, o rock de arena declarado de Should I Stay or Should I Go. Há espaço até para um flerte com psicodelia e dub na perturbadora Straight to Hell.

O imediatismo do pop parece que existe para mascarar as letras e temas das músicas, que são tão politizadas e melhor abordadas que em Sandinista!. Há o sarcasmo da negação de direitos de Know Your Rights, a melancólica homenagem ao ator e fotógrafo de guerra Sean Flynn, o reggae apocalíptico de Guetto Defendant (que conta com a participação especial de Allen Ginsberg), a critica à crise do petróleo em Rock The Casbah, as imagens impressionistas que remetem ao horror da guerra e à glamourização da violência na mídia em Death is a Star.

Por outro lado, é em Combat Rock que as diferenças entre os integrantes, principalmente Joe Strummer e Mick Jones, se ressalta. Enquanto o primeiro queria aprofundar nas experimentações com diversos gêneros, Mick acreditava que a banda deveria seguir o caminho do rock de arena e do punk clássico. Ouvimos no álbum uma banda coesa, mas que está à beira do colapso, cujas tensões foram bem canalizadas em Combat Rock. E, no final, estas tensões implodiram a banda no sofrível Cut The Crap."

Nota: 9/10








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