terça-feira, 23 de dezembro de 2014

The Rolling Stones - Goats Head Soup


Ano de lançamento: 1973


Felipe:
"Goats Head Soup é talvez o disco mais subestimado dos Stones. Lançado logo após o grandioso Exile on Main Street, é um álbum mais enxuto e que retrata uma grande mudança na banda. Os Stones saiam da fase que marcou a primeira década do grupo, de garotos sujos com composições e atitudes subversivas e anti-establishment. Goats Head mostra Jagger e cia entrando na casa dos 30 e captura o momento em que os Stones caminhavam para se tornar uma banda elitizada e que, mesmo com todos os problemas com drogas e prisões, se via frequentemente envolvida com a nata da aristocracia europeia.
O álbum tem uma capa estranha e perturbadora. Cada um interpreta de um jeito, mas pra mim a cabeça de Mick parece querer sair de uma placenta de borracha. O título é pior ainda: “sopa de cabeça de bode” é um prato da culinária jamaicana, país onde o disco foi gravado e que, segundo Keith, era uma das únicas nações que permitiam a entrada da banda sem restrições judiciais. Também pode ser uma referência à magia negra e ocultismo, temas frequentes nas canções dos Stones.
Goats Head marca o início da fase glam dos Stones. O ácido e a maconha que embalaram os shows, gravações, composições, festas e dia a dia dos anos 60 davam lugar à cultura da cocaína, fazendo com que o som e os costumes de toda uma geração fossem aditivados com a falsa sensação de poder e autoindulgência que a droga proporciona. O álbum tem a vibe da época e parece ter sido feito pra tocar no modo repeat durante a madrugada inteira dentro de uma casa noturna, acompanhado de muito álcool, pó, limusines e sexo grupal hedonístico. A cara dos anos 70.
Dancing with Mr. D. é uma faixa encharcada de glam rock; Doo Doo Doo Doo Doo (Heartbreaker) usa um pote inteiro de glitter colorido pra mascarar o tema sombrio falando de assassinato de crianças e violência policial; Can You Hear the Music é lenta, drogada e dançante e Star, Star (originalmente “Starfucker”), a pérola do disco, é um rock Chuckberryano cuja letra pornográfica levou a canção a ser censurada.     
O álbum também traz algumas baladas, talvez praquele momento de bad pós-noitada regada à cocaína. A mais famosa é Angie, mas a bela e solitária Winter também faz o ouvinte sentar quando chega em casa lá pra meio dia ou uma da tarde, esticar as pernas, pensar se é isso mesmo que ele quer da vida e esperar a ressaca chegar.
Além dos membros da banda, que na época contava com Mick Taylor na guitarra, o álbum traz músicos de estúdio como Billy Preston e Nicky Hopkins, além dos amigões de sempre Ian Stewart e Bobby Keys.  Goats Head Soup não é citado entre os maiores álbuns da história - nem mesmo entre os maiores dos Stones - mas é uma coleção de músicas sombrias e despretensiosas que pelo menos fazem com que um clima estranho tome conta do lugar toda vez que você o coloca pra tocar. Medo.
Nota: 9/10


Rafael:
"Há obras que, quando concebidas, ganham um ar etéreo, perene e universal, como se sempre existissem e há aquelas que são marcas indeléveis do momento em que foram feitos, tal qual uma Polaroid desgastada. No intervalo de um ano, os Rolling Stones conseguiram a façanha de realizar duas obras que se encaixassem nestas duas definições.

Exile on Main Street é um retrato dos Stones quando foram exilados de sua pátria. Gravado em sua maior parte num ex-bunker nazista na França, o disco é o reflexo de uma banda que respirava música dia a dia, criando clássicos através de incontáveis jams, mas que refletiam ali sua sinceridade ao reinterpretar os estilos de música popular americana à sua maneira. É um disco, a princípio, inexcrutável mas que a cada audição nos deixa a dúvida se sempre existiu no vocabulário da música popular. Exile on Main Street transcende sua época.

Goats Head Soup é a outra face desta moeda. Também concebido neste momento de exílio da Inglaterra, vemos os Stones alocados na Jamaica, um dos poucos países que ainda os “aceitavam”. As práticas de gravação também foram as mesmas de Exile, mas o resultado é o retrato exato da época em que foram concebidos, sintetizados em duas palavras: excesso e exaustão. Era praticamente um retrato em forma de música do que se passava naquele momento na década de 70: o glamour e a decadência, a euforia das drogas e a melancolia da ressaca do dia depois, o prazer imediato do sexo livre e a solidão das relações vazias, a música criada com aspirações artísticas e a profissionalização crescente (no pior sentido possível) das gravadoras e selos musicais. Era tudo ao mesmo tempo agora, vezes três, vezes 10.

Há momentos que o som está à beira da saturação, as caixas quase “estouram” como se não conseguissem conter o som dos Stones de Goats Head Soup. É fato que produziram tanto que se deram ao luxo (ou à falta de critério, devaneio? vai saber...) de descartar pérolas como Waiting on a Friend e Tops (seriam “aproveitadas” depois em Tattoo You, de 1981). E nem todas as escolhas da banda foram as melhores, como o blues de Silver Train, que vale mais pelo instrumental que pela letra inócua e repetitiva, ou as flautas duvidosas que quase soam deslocadas no mantra insistente de Can You Hear The Music, ou até mesmo a orquestra ao final de Winter que a deixa no limite do brega.

Só em um disco como Goats Head Soup podemos ouvir uma música de protesto contra os policiais que atiraram em uma criança que tenha o refrão pegajoso de Doo doo doo doo doo (Heartbreaker) ao lado de uma balada deslavada e açucarada (mas sincera) como a de Angie e parecer natural. Apenas num álbum extremo como este ouviríamos o pedido de socorro de Keith Richards (talvez por seus excessos com a heroína?) na bela e melancólica Coming Down Again, o flerte lascivo com o ocultismo e a morte em Dancing With Mr. D., o sentimento de exaustão na plena juventude em 100 Years Ago, a paródia sincera (existe isto?!) de Chuck Berry na irresistivelmente promíscua Star Star.

Em Goats Head Soup não encontramos um disco clássico dos Stones, mas um desvio de rota que é marcante pelas tentativas erráticas e pelo charme de suas falhas, e por ser o puro reflexo de uma época que pecou pelos seus excessos e contradições, mas que tirou prazer e êxtase deste limite de quase se perder, tal qual a banda coloca num dos versos de Can You Hear The Music:

'Sometimes you're feelin' you've been pushed around
And your rainbow just ain't here
Don't you fear, don't you fear

When you hear the music trouble disappear
When you hear the music ringin' in your ears
Can you feel the magic floatin' in the air?
Can you hear the magic? Oh, yeah, yeah' "

Nota: 8/10


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