quarta-feira, 29 de julho de 2015

The Velvet Underground - White Light/White Heat


Ano de lançamento: 1968


Felipe:
Ouvir Velvet Underground não é uma experiência fácil. Definitivamente, não é o tipo de som que patricinhas de academia metidas a rockeiras conseguem ouvir, tampouco os rooooockers que pululam em todas as pracinhas de qualquer aglomeração urbana. É complicado, adulto, agressivo, sujo, mau, perturbador. Demora algumas audições pra se acostumar e, se você não tiver um mínimo de bagagem cultural pra entender o contexto e enxergar a beleza obscura e a intelectualidade das músicas, não tem como acompanhar. Ouvir um disco do VU é como ouvir uma mão que arranha o quadro negro. Muita gente que consegue ouvir o suficiente pra gostar do clássico álbum da banana, desiste da banda no próximo passo, que é ouvir White Light/White Heat. Graças a Deus. 

Lançado em 1968, White Light/White Heat captura a banda em um momento em que as relações com seu mentor, entusiasta e mecenas Andy Warhol foram rompidas. Andando por conta própria, os Velvets logo demitiram a rainha nórdica, amazona do gelo, deusa glacial Nico, que nunca fora tão bem-quista assim pelo quarteto, especialmente pelo ciumento Lou Reed, que queria ser a bicha-mor e não admitia a concorrência da bela modelo alemã.   

As composições resumem bem as influências da banda: suas conexões com o avant-garde dos anos 60 em Nova York; a produção cinematográfica underground de Jack Smith; a música de vanguarda de John Cage; o free jazz de Ornette Coleman, o submundo da literatura de William Burroughs; a devassidão e todo tipo de perversidades do sexo bizarro; as drogas pesadas; os becos imundos. Tenta explicar isso pras rockeirinhas de academia que ouvem Red Hot Chili Peppers pra você ver.  

Mas, antes de tudo, o VU era uma banda de rock. A faixa-título é uma ode distorcida aos efeitos das anfetaminas. The Gift é uma história de terror com letra genial: narrada como um conto sobre um fundo musical, a canção fala sobre Waldo Jeffers, um infeliz apaixonado que, louco de saudade de sua amada, resolve se entregar a ela embrulhado na forma de um presente. Ao tentar abrir o pacote, Marsha acaba enfiando a lâmina na cabeça de Waldo, “que rompeu rapidamente, causando pequenos arcos harmoniosos em vermelho a pulsar gentilmente no sol da manhã”.  

Lady Godiva's Operation é outra genialidade. A faixa narra detalhadamente a operação de mudança de sexo da travesti Lady Godiva, que acorda no meio do procedimento. Como se não bastassem as informações cirúrgicas, a faixa possui um clima de filme de terror, com o som de um batimento cardíaco, gemidos de lamúria e sussurros de agonia. “(...) O doutor já vem’, pensa a enfermeira docemente enquanto liga a máquina / o corpo está nu e sem pelos / ele que antes gritava agora está em silêncio e quase adormecido / amarrado firmemente à mesa branca / o éter impede o corpo de definhar e se contorcer debaixo da luz / o doutor chega com a faca / ‘isso deve ser cortado’ / agora vem o momento da grande decisão / o médico faz sua primeira incisão / ‘os tubos de éter estão vazando’, diz alguém desleixado / ‘o paciente parece não dormir tão bem’ / os gritos ecoam pelo corredor / ‘não se desespere’ / ‘alguém lhe dê pentatol imediatamente...”. 

Em seguida, vem a balada Here She Comes Now, uma canção curta e doce, regravada pelo Nirvana e que destoa do restante do álbum. O lado B do disco (se você não sabe do que se trata um lado B, pergunte ao seu avô) tem apenas duas músicas. A primeira é I Heard Her Call My Name, um protosonicyouth, cujo solo distorcido (uma das raras ocasiões em que Lou Reed tenta ser virtuoso) já fez literalmente as pessoas vomitarem. Ponto pro Lou Reed. Queria eu que as pessoas vomitassem ao ouvir minhas músicas. A segunda e última faixa é Sister Ray, uma viagem de mais de 17 minutos sobre - vejam só - travestis, bebedeiras, boquetes, drogas e assassinato.    

Tudo isso embalado numa capa preta, com a imagem de uma caveira também preta, última ideia de Warhol antes de romper com seus protegidos. Como Lou Reed afirmou uma vez, o álbum só não foi censurado porque ninguém ouviu. 

Um conselho: escute o disco sozinho, no escuro e chapado do máximo de coisas que puder chapar ao mesmo tempo. 

Nota: 10/10



Rafael:
Imagine-se em meio ao Verão do Amor de 67 e você e seus colegas de banda lançam um disco que é conscientemente a negação daquele momento, um disco agridoce (mais acre que doce, só para registro), cheio de drones, feedbacks, odes à heroína, à sexo sujo, vulgar e sadomasoquista, às festas melancólicas e à esquizofrenia. É óbvio que ninguém entendeu ou se recusou a entender este disco. E foi um fracasso de vendas e críticas à época. Você pensaria: “Que tal outra abordagem para o próximo disco, quem sabe?”

A banda em questão é o Velvet Underground e o disco feito, White Light / White Heat, é um retumbante, glorioso e gigante “NÃO” para a pergunta feita acima. “Podíamos estar levando uns aos outros para pular de um penhasco, mas com certeza todos estávamos indo na mesma direção. Na época de White Light/White Heat, nossas vidas eram um caos. E é isto que aparece no disco”, Sterling Morrison contava sobre a época de gravação de White Light/White Heat.

Sem mais estar vinculados à Andy Warhol e sem a presença de Nico, os Velvets estavam fazendo shows que levavam as canções do primeiro disco a extremos de distorção, feedback e drones inimagináveis aos poucos fãs que os acompanhavam. Estendiam em longas jams insandecidas e começaram a compor e tocar novo material. "Queríamos algo conscientemente 'anti-beleza'..." John Cale afirmaria anos depois.

E conseguiram: até hoje a experiência de ouvir White Light/White Heat não é fácil, mesmo contando apenas com seis faixas e 40 minutos de duração. A questão é que são seis faixas de um rock experimental e extremo que pode se tornar um pesadelo alucinante, uma viagem assustadora ou uma festa negra pagã, tudo dependendo de como estará seu estado de espírito para passar estes 40 minutos.

Tudo começa com a faixa-titulo, um boogie woogie do inferno, com o volume das guitarras no máximo brigando por espaço com um piano martelado insistentemente numa homenagem aberta às anfetaminas e speed, dieta básica da banda à época. Em seguida vamos à perturbadoramente engraçada “The Gift”, que conta com os canais de áudio divididos entre a banda tocando um proto-punk lento mas cheio de fuzz de um lado e, no outro, a história tragicômica, surreal e patética de Waldo Jeffries, que se envia pelo correio (!) para a namorada que o despreza e é morto quando ela tenta abrir o pacote. Há ainda no primeiro lado do disco a subversão grotesca da lenda de Lady Godiva na balada gótica de “Lady Godiva's Operation” e o único momento de (aparente) calmaria do disco com a melancolicamente bela “Here She Comes Now”.

Quando imaginamos que a banda havia chegado ao seu limite de experimentalismo no lado A nada nos prepara para as duas voadoras na cabeça que seguem no lado B. “I Heard Her Call My Name” inicia como se surgisse do nada, numa massa sonora atordoante que tentam refletir o terror do protagonista da canção que ouve a voz de seu finado amor. E quando Lou Reed berra “E minha mente se despedaça!” passamos a ser testemunhas de um dos solos de guitarras mais absurdos, fragmentados e insandecidos que se pode ter notícia na música pop. Na sequência, para fechar com “seringa de ouro” o épico decadente e junkie de “Sister Ray”, 17 minutos de um mantra insistente para a maior música de três minutos que você ouvirá em sua vida e não vai reclamar. Na melhor filosofia “me segue e continue tocando” Reed revelaria depois, em 1976: “Quando tocamos ‘Sister Ray’ nós colocamos todos os amps em 10, e som vazando por todo lugar. Era isto. Nos perguntaram o que estávamos fazendo. Dissemos que íamos começar. Disseram ‘quem vai tocar o baixo?’ Nós dissemos que não tinha baixo. Nos perguntaram quando terminaria? Não sabíamos. Quando acabar, é quando irá acabar.”

Nota: 10/10

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